Regime de partilha do pré-sal: o novo culpado

Henrique Jager, Rodrigo Leão
Carta Capital

Postura estratégica da Petrobras levou ao incremento de reservas e de produção, muito mais do que a implementação do regime de concessão

 

Nas últimas semanas, ideias de mudanças do regime de partilha do pré-sal ganharam força. Em texto publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o senador José Serra defendeu que, graças ao estabelecimento do regime de concessão em 1997, foi possível ampliar o volume de reservas provadas e da produção de petróleo no Brasil.

Entretanto, não foi o regime de concessão que possibilitou uma “primeira” expansão de atividades exploratórias no Brasil, mas sim o que ficou conhecido como “Rodada Zero” em 1998.

Essa rodada estabeleceu um acordo entre Petrobras e ANP, no qual foram concedidas à petrolífera brasileira 115 blocos exploratórios e 51 para áreas de desenvolvimento condicionadas à realização de novos investimentos.

A definição dessas áreas exploratórias ocorreu por solicitação da Petrobras, que, a partir de um amplo estudo da sua área de exploração denominado superinventário, buscou preservar blocos estratégicos com um maior potencial de descobertas.

A fim de atender o acordo com a ANP, entre 1997 e 2000, os investimentos da Petrobras em exploração cresceram 50% e a utilização de sondas de perfuração mais que dobrou.

A partir de 2003, um “segundo movimento” de expansão das atividades exploratórias pode ser explicado pela postura mais agressiva da Petrobras em adquirir novas fronteiras. Entre a quarta e a sexta rodada de leilões (2003-2005), por exemplo, a petrolífera arrematou 288 blocos, um número bem superior em relação à Rodada Zero. Além disso, os investimentos em exploração saltaram de US$ 4,5 bilhões em 2002 para US$ 9,0 bilhões em 2006.

Regime de concessão

Foi a postura estratégica da Petrobras, portanto, que levou ao incremento de reservas e de produção de petróleo, muito mais do que a mera implementação do regime de concessão.

Não por acaso, praticamente todo o crescimento de quase seis bilhões de barris de reservas provadas de petróleo (7 para 13 bilhões), entre 1999 e 2008, foi obra da Petrobras.

Todavia, dentre as nove áreas ofertadas nos dois leilões, quatro estavam abertas para receber propostas de outras operadoras (Atapu, Sépia, Bumerangue e Cruzeiro do Sul), uma vez que a Petrobras não exerceu seu direito de preferência nesses campos.

E mais: nas duas últimas áreas, o lucro-óleo mínimo exigido era notadamente baixo (Bumerangue com 26,68% e Cruzeiro do Sul com 22,87%), bem inferior do que o de Libra (41,85%), por exemplo. Mesmo assim, as propostas não vieram.

Nessa análise, omite-se a situação das maiores empresas globais de petróleo (majors) do mercado global de exploração.

Primeiro, várias dessas empresas estão comprometidas com grandes investimentos exploratórios em novas fronteiras. A Exxon, por exemplo, anunciou em 2019 um investimento anual de US$ 4 bilhões para explorar a Guiana e na Bacia do Permiano e a chinesa CNOOC anunciou investimento de US$ 2,3 bilhões por ano até 2025 para explorar as recentes descobertas de gás no Mar da China.

Segundo, há um crescimento da incerteza para realização de gigantescos e simultâneos investimentos de exploração no longo prazo pelas majors, tanto pelo patamar mais baixo dos preços de petróleo desde 2014, como pela sua maior disciplina do capital, cada vez mais determinada pela visão de curto prazo do mercado financeiro.

Nesse contexto, não se pode ignorar o crescimento do risco de “reputação” das majors, principalmente as europeias. Para essas empresas, que já são questionadas socialmente pelos gigantescos impactos causados ao meio ambiente, a associação de sua imagem ao atual governo, cuja gestão ambiental é marcada pela liberação ilimitada de novos agrotóxicos e intensificação das queimadas na Amazônia, eleva significativamente o seu risco de reputação.

Estratégia das majors

Dessa forma, a análise de que o regime de partilha seja o responsável pelo insucesso dos leilões recentes omite uma avaliação das tendências estratégicas das majors.

Mais grave é que essa discussão não incorpora os ganhos importantes que o regime de partilha traz para o país em relação ao de concessão.

Na concessão, a empresa detentora tem um direito completo sobre determinada área territorial, com total liberdade de operação, que se traduz no controle do ritmo e do processo de produção. Com isso, o Estado perde autonomia sobre a área concedida e passa a ser um simples receptor de parte da renda gerada com a venda da produção.

Na partilha, por sua vez, o Estado recupera parte desta autonomia perdida, uma vez que a empresa com o direito de exploração, após arcar com os custos, se apropria somente de parte da produção e uma outra fica com o Estado (lucro-óleo), em percentual a ser definido caso-a-caso.

Além disso, o Estado acompanha de perto, em geral, por meio de uma empresa constituída para este fim (PPSA), todo o processo de exploração e produção. Isso permite que os custos sejam controlados ao longo do tempo de exploração a fim de ampliar a parcelo do lucro-óleo.

Deste modo, além de se apropriar de parcela da riqueza gerada, o Estado detém nos contratos de partilha um relativo controle sobre o processo de produção e venda do petróleo, o que implica em importante vantagem em relação à concessão no jogo da geopolítica do petróleo e no embate entre consumidores e produtores.

Essa, aliás, parece ser a carência das análises sobre a mudança dos regimes de exploração no Brasil: a compreensão que, com o pré-sal, o país integra um jogo complexo geopolítico, no qual a avaliação do custo-benefício de tais mudanças não deve considerar apenas questões regulatórias internas, mas também a disputa global pelo petróleo e as estratégias e interesses das majors.

Texto publicado originalmente em Carta Capital

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